narrativas cis, narrativas trans
- demoniaeditora
- 1 de fev.
- 6 min de leitura

Há mais ou menos um ano o poeta ucraniano Maksym Kryvtsov morria após um bombardeio russo. Morria como um soldado, um metralhador de um exército fascista, com um único livro publicado e oportunamente intitulado “Poemas do campo de batalha”. O livro tem sido um sucesso desde então.
Não que seja bom: li alguns poemas no website da Rádio Europa Livre e os poemas são sofríveis. Não vou traduzir nada aqui, não vale a pena, mas é apenas um delírio de heroísmo de um homem branco cisgênero. Aquele velho sonho de ser Hemingway.
Mas recentemente leio uma notícia muito melhor e mais interessante do que a da morte do poeta ruim: Luigi Mangione é muito popular na prisão- seus colegas se aproximam e lhes contam causos sobre familiares que sofreram algo por conta de as seguradoras de saúde terem negado algum tratamento ou cobertura. Luigi sim pode ser considerado um herói.
Mas parece que ainda hoje homens brancos cisgêneros são os donos da única e monolítica forma da jornada do herói. As mulheres ainda têm, vai lá, uma Lyudmila Pavlitchenko (sniper do exército soviético que matou 309 nazistas), mas nós pessoas trans servimos só pra outros tipos de papel.
Na verdade as pessoas cis raramente lembram de nós. E quando lembram, não é de nós de fato, mas de uma ideia que elas têm de nós. Como Charlotte DiLaurentis, personagem da série Pretty Little Liars: é a vilã, mas também é uma vítima. Ela sofre a vida inteira, sendo rejeitada pelo pai por ser trans, é colocada em um hospital psiquiátrico e passa a vida inteira lá, longe de sua irmã e sem amizades. Mas quando escapa da instituição parte uma vingança equivocada e cruel, que acaba recaindo sobre pessoas que não tinham culpa nenhuma na história.
Ou, então, somos colocades num lugar exótico e monolítico, que pode parecer algum reconhecimento, mas que muitas vezes é destrutivo.
Eu acredito piamente que esse lugar em que não existimos como pessoas reais é parte do simbólico que permite que coisas como a mudança de política do Meta, para aceitar que ser trans seja equiparado a uma doença mental, entre outras coisas, seja algo tão fácil para a cisgeneridade aceitar.
Faço um paralelo: em Israel a cultura oficial, que foi moldada pelos dirigentes do estado sionista, em detrimento de diversas outras culturas judaicas menos coloniais, considera que os judeus falantes de íidiche do leste europeu eram passivos e submissos, tendo a shoah acontecido por falta de resistência aos nazistas e seus aliados.
É interessante notar que o iídiche disputava a hegemonia como idioma oficial do estado nascente, mas já se associava com uma cultura não sionista. Então diminuir os falantes de iídiche e sua cultura era parte de um esforço deliberado para enfraquecer essa cultura e suas pessoas, ridicularizá-los e assimilá-los.
Da mesma maneira me parece que há o objetivo, por parte da cultura branca-cristã-ocidental-hetero-cis, de nos apagar. Nos enfraquecer e nos ridicularizar, e por fim, nos assimilar e voltar a um suposto tempo em que ‘isso’ (nós, pessoas trans) não existia.
E, assim como a narrativa israelense era obviamente falaciosa- existem exemplos e mais exemplos da resistência judaica na Segunda Guerra Mundial, tanto dentro quanto fora dos campos e guetos- essa narrativa cisgênera sobre a transgeneridade também é.
Um dos meus livros favoritos de Leslie Feinberg é o ‘Transgender Warriors’, em ê autore se dedica a essas outras narrativas trans ao longo da história. Narrativas em que não somos o vilão, a vítima ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Narrativas nas quais não somos uma curiosidade que fica entre o engraçado, o bizarro e o digno de pena.
Mas não são apenas essas narrativas históricas que merecem atenção. Obras de ficção feitas por pessoas trans também são importantes, não só por mostrar para pessoas cisgêneras que não cabemos nas narrativas simplistas delas, mas também por mostrar para nós mesmes as possibilidades que temos. Também a poesia se encaixa aí, em algum lugar.
Uma das primeiras obras literárias que pode ser considerada como tendo sido escrita por uma pessoa trans é o poema evan bohan, de Calônimo ben Calônimo, ume rabi e polímata francese, que nasceu em 1286, em Arles, na França. No poema, elu imita e inverte uma oração judaica na qual se agradece por não se ter nascido mulher:
“Que destino horrível para minha mãeque ela teve um filho.Que perda toda a vantagem!Maldito seja quem anunciou a meu pai:É um menino!Maldito seja aquele que tem filhos homens.Sobre eles um jugo muito pesado foi posto, dificuldades e limites.Algumas em privado, algumas em púbico,algumas para evitar a mera aparência da violaçãoe algumas entrando no mais secreto dos lugares.Fortes estatutos e mandamentos espetaculares,seiscentos e trezeQuem é o homem que pode fazer tudo o que está escrito,para que possa ser poupado?Ah, mas tivesse o artesão que me fezme criado, ao invés, como uma mulher.Hoje eu seria sábia e perspicaz.Nós iríamos tecer, minhas amigas e eu,e sob a luz da lua girar nossa rocae contar histórias uma pra outrado crepúsculo até a meia-noite.Contaremos os eventos do nosso dia, coisas bobas,assuntos sem importância.Mas eu também me tornaria muito sábia de girare diria “Feliz é aquela que sabe como trabalhar com linho penteado e tecê-lo em tecido branco e fino.”E por vezes, ao modo das mulheres,eu deitaria no chão da cozinha,entre os fornos, acenderia o carvão, e provaria os diferentes pratos.Nos feriados e vestiria minhas minhas melhores jóias.Eu tocaria o tambore minhas mãos soariam em palmas.E quando estivesse pronta e a hora fosse certa,um excelente jovem seria minha sorte.Ele me amaria, me colocaria num pedestal,me cobriria com jóias de ouro,brincos, braceletes, colares.E no dia marcadona estação da alegria quando as noivas se casampor sete dias o garoto aumentaria meu deleite e satisfação.Se eu estivesse faminta, ele me alimentaria com pão bem sovado.Se eu estivesse sedenta, ele a mataria com vinho suave e escuro.Ele não me castigaria nem trataria com severidadee o meu prazer ele não diminuiriaA cada shabes, a cada lua nova,sua cabeça descansaria sobre meu peito.As três tarefas maritais ele cumpriria,comida, roupa e intimidade regular.E as tarefas da esposa eu também cumpriria,sangue, velas e pãoPai no céu, que fez milagres pra nossos ancestrais com fogo e águaVocê mudou o fogo dos Caldeus para que não queimasse tanto,Você mudou Dina no ventre da mãe para que fosse uma menina,Você transformou o cajado em cobra perante um milhão de olhos,Você tornou a mão de Moisés brancae o mar em terra seca.No deserto você transformou uma rocha em águapedra dura em fonte.Quem então me transformaria de homem em mulher?Se ao menos eu merecesse isso, ser tão agraciada por vossa bondade…O que eu devo dizer? Por que chorar ou ser amarga?Se meu Pai no céu decretou para mime me aleijou com uma deformidade imutávelentão não desejo removê-la.E a mágoa do impossívelé uma dor humana que nada vai curare para a qual nenhum conforto pode ser encontrado.Então eu vou aguentar e sofreraté eu morrer e me decompor no chão.E já que eu aprendi com a tradiçãoque abençoamos o tanto o bom quanto o amargo,eu vou abençoar numa voz, baixa e humilde,Bendito seja, ó Senhor,que não fez uma mulher.
Algumas leituras (mais clássicas) colocam o poema como sendo mais um lamento a respeito das inúmeras regras que um judeu (ortodoxo) deve seguir. Do final do século XX para cá, no entanto, vem prevalecendo a leitura de que Calônimo era uma mulher trans e estava lamentando seu próprio destino, com um bom tanto de ironia a respeito da tradição.
Mas o que me soa mais importante aqui é justamente essa representação bastante singela que ele faz de como seria sua vida feminina. Seria uma mulher judia como qualquer outra em seu tempo, sem grandes dramas, que ficaria feliz em tecer e fofocar com as amigas sob a luz da lua. Teria um marido com o qual seria feliz, e teria tranquilidade.
Outro poema a trazer a representação de uma pessoa trans foi escrito quase 700 anos depois, por Joshua Jennifer Espinoza. O poema de Espinoza, como toda sua poesia, tem algo de assombroso, algo que lembra que já estávamos por aqui há muito tempo atrás (muito antes ainda de Calônimo escrever seu poema) e que vamos estar por muito tempo, apesar de todas as violências que nos infligem:
A Califórnia é um deserto e eu sou uma mulher dentro dele.A estrada adiante se curva para o lado e eu dou um solavanco dentro de mim.Eu estou cheia de sentimentos feios, pensamentos terríveis, pesadelosde ruína, e tanto amor deixado não-dito.
Mercúrio está retrógrado? alguém pergunta.Alguém responde, Não, é alguma outra coisadesse tipo, no entanto. Alguma outra coisa desse tipo.Esse deveria ser meu nome.
Quando você me perguntar se eu sou uma mulher de verdade, um ser humano,uma identidade coerente, eu vou dizer Não, eu sou alguma outra coisadesse tipo, no entanto.
Ume verdadeire cidadane do planeta terra fecha seus olhose diz o que é na frente do espelho.Uma boa pessoa dá e não pede nada de volta.Eu dou e eu peço uma única coisa-Me escute. Me escute. Me escute. Me escute. Me escute.Me escute. Carregue o peso da minha voz e não esqueça-as coisas assombram. As coisas existem muito tempo depois de serem mortas.
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